terça-feira, 7 de agosto de 2012

O silêncio de um país inteiro


No último sábado, o Ciência em Foco exibiu o filme Corpo (2007), de Rossana Foglia e Rubens Rewald, seguido da palestra O corpo de todos nós, com a nossa convidada do mês, a doutora em psicanálise Maria Rita Kehl. Psicanalista e escritora, Rita ressaltou a força e a atualidade renovadas do filme, sobretudo tendo em vista sua integração à Comissão da Verdade, em maio deste ano. Abordando temas como o desaparecimento de pessoas na época da ditadura, Corpo projeta uma continuidade de certos procedimentos deste período da história recente na época atual. Rita Kehl focou sua análise do filme nos aspectos que caracterizam esta conexão. A partir da trajetória do personagem Arthur, cuja vida parece adquirir sentido quando passa a se importar com a busca da identidade do corpo encontrado, o filme nos envia à busca de um segredo mais terrível, cuja escala se amplia para abarcar a história recente do Brasil.

Embora a narrativa do filme esteja voltada para a resolução de um mistério envolvendo um corpo intacto encontrado entre as ossadas do período ditatorial, a ressonância que se cria é com a época atual, quando observamos uma indiferença generalizada - tanto política quanto da mídia -, com relação à violência institucional, às baixas não contabilizadas de mortes em decorrência de ações policiais, que afetam sobretudo aqueles que se encontram à margem da sociedade. São as camadas economicamente desfavorecidas da população que sofrem com esta indiferença. De acordo com Rita Kehl, a imagem do corpo intacto se apresenta como um elemento simbólico que funciona como metáfora desta situação, uma imagem que nos envia a outras formas de morte, como a da sensibilidade e a da solidariedade.

Rita Kehl se referiu a pesquisas mencionadas no livro O que resta da ditadura? [organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010]  que apresentam não apenas o Brasil como o único país da América Latina onde os assassinos e torturadores da época não foram punidos, como também apresentam dados que mostram o país como único no qual a polícia mata mais pessoas que durante todo o período. Muitos desses mortos atuais, pela condição desfavorável de suas famílias, permanecerão no anonimato, condenados ao silêncio e cada vez mais isolados da existência. O filme dialoga com este silêncio que não é pontual, mas que pertence a um país inteiro, quando faz alusão a práticas do período da ditadura: Rita Kehl comentou, como exemplo, a cena em que uma médica legista, na época atual, pede a seu subordinado para assinar o laudo de um óbito. Quando entra em cena a transferência de responsabilidade, o filme projeta a condição dos subordinados de hoje e sua ausência de voz.

Por meio do fluxo de suas imagens, o filme parece demonstrar um imaginário social abalado por um trauma, e as tentativas de resolução de um possível enigma, associado à memória dos desaparecidos políticos. A repetição do trauma aparece como uma das diversas formas de resolução deste enigma, e por isso nos defrontamos com a repetição da violência institucional no Brasil: a repetição de uma situação de exceção na qual o Estado se posiciona contra o povo, que se configura como uma reação a um trauma anterior ligado a uma violência que não foi reparada, punida, denunciada ou elaborada. Evocando a noção de melancolia do filósofo alemão Walter Benjamin, Rita Kehl comentou a prática do personagem Arthur de fazer diagnósticos do óbito das pessoas que observa no espaço urbano. Segundo ela, o personagem produz diagnósticos de melancolia, no sentido que o termo fora abordado por Benjamin, distanciando-se de seu sentido clínico. Para Benjamin, a melancolia se associa a um sintoma social que diz respeito à indolência instalada quando uma pessoa ou um povo traem sua história, sua tradição, sua origem, para aliar-se ao cortejo dos vencedores, àqueles que se encontram em uma posição superior. Hoje, quando a posição de vencedores não é mais ocupada pelos militares da ditadura, nos encontramos diante do cortejo da mercadoria e da economia predadora.

Tivemos um movimentado debate, no qual foram reverberadas inquietações atuais sobre a política e a história, enfatizando o cuidado necessário de se marcar a diferença entre o período totalitário e o período democrático atual. Agradecemos o apoio dos diretores do filme, e também à APILRJ - Associação de Profissionais Intérpretes de Libras do Rio de Janeiro. Nossa próxima sessão acontece no dia 1º de setembro, quando exibiremos o filme A origem (Inception - E.U.A., 2011), do diretor inglês Christopher Nolan. Como convidado do mês, teremos a honra e a alegria de contar com a participação de Nelson Job, psicólogo, pós-doutorando e doutor em História das Ciências, Técnicas e Epistemologia pelo HCTE/UFRJ. Ele apresentará a palestra Sonhos & Ação! O onirismo pop de Christopher Nolan. Esperamos por vocês!



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