segunda-feira, 2 de abril de 2012

O que significa ser um humano?


"O que a ciência faz é tentar desvendar a natureza, e a natureza não ensina como devemos viver", Benilton Bezerra Jr., doutor em Saúde Coletiva e professor do Instituto de Medicina Social da UERJ.

1) O filme Sem limites sugere, a partir da ficção científica, uma realidade na qual pessoas saudáveis passam a fazer uso de medicamentos psiquiátricos, com fins de aprimoramento de determinadas capacidades biológicas ou cognitivas, um cenário que parece já estar se desenhando nos dias atuais. Como a medicina e a psiquiatria participam disso?

A medicina vem mudando rapidamente seu perfil nas últimas décadas. Ela deixou de operar entre a prevenção e o tratamento, e passou a incorporar a gestão permanente dos riscos à saúde, incorporando definitivamente ao seu horizonte o melhoramento das condições da vida física e mental. Na verdade, como veremos no debate, nem sempre é fácil distinguir tratamento de aprimoramento, essas fronteiras são mais móveis que estáveis. A questão é que hoje essa e outras fronteiras se deslocam muito rapidamente. A orientação dominante na psiquiatria, por exemplo, com a adoção dos DSM [o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders] e seus “transtornos”, vem diluindo os limites entre normalidade, diferença e patologia, fazendo de todos potenciais consumidores de diagnósticos e tratamentos e/ou intervenções para otimizar vários aspectos da vida subjetiva. Desde o início, os humanos procuram aprimorar suas capacidades. Nunca foi diferente. O que há de novo é a vaga sensação de que poderemos nos reinventar completamente como espécie, dado o alcance das biotecnologias. A bioengenharia molecular, a biônica, a psicofarmacologia, a biologia sintética etc, certamente irão mudar drasticamente certos aspectos da experiência humana. Daí a importância de uma visão crítica sobre os caminhos que estamos tomando.

2) Na cultura contemporânea o conhecimento que se apresenta como científico parece ter adquirido um enorme poder de persuasão social. De que modo o discurso científico alcançou o protagonismo que possui, e que desdobramentos éticos e sociais podemos daí depreender?

Já há algumas décadas, o discurso científico se tornou, de certa forma, o único que parece exibir autoridade e um valor incontestáveis. Todos os demais se tornaram alvo de crítica e desconfiança por parte dos indivíduos, que se veem como plenamente autônomos e capazes de decidir sobre tudo. O que acontece, porém, é que, evidentemente, precisam de mapas de orientação na vida social. É nesse espaço que floresce a expectativa de encontrar na ciência e suas produções algo como esse mapa. Mas a ciência não pode ocupar essa função. O que ela faz é tentar desvendar a natureza, e a natureza não ensina como devemos viver. Sobretudo hoje, quando a tecnociência aponta para uma superação da condição natural do ser humano, é preciso recuperar a urgência de recolocar as questões éticas fundamentais: o que significa ser um humano? Que tipo de sociedade queremos construir, fundada em que valores? Como utilizar a ciência e as tecnologias para auxiliar nesse objetivo?

3) Contraplanos - expresse em poucas palavras (ou apenas uma) sua sensação com relação aos sentidos e problemáticas evocadas pelas seguintes palavras:

Sofrimento: no plano da subjetividade pode-se fazer uma interessante distinção entre sofrimento e dor: o sofrimento é o mal-estar quando apropriado subjetivamente, ou seja, que interroga o sujeito nas suas relações consigo próprio e com o outro, que o interpela em busca de um sentido ou uma significação para sua experiência; a dor, ao contrário, é a vivência muda do mal-estar, que parece simplesmente acontecer ao sujeito sem que ele se veja implicado; de certa forma, no cenário atual é possível afirmar que o mal-estar vem sendo cada vez mais vivido como dor (daí o recurso automático à sua eliminação, sem nenhum apelo a uma reflexão sobre suas fontes e origens) do que como sofrimento.

Corpo: vivemos cada vez mais numa cultura somática, em que o corpo ocupa um lugar central na definição do que somos e do que queremos ser. Como tudo na história, isto traz algumas consequências preocupantes e outras interessantes. Entre as primeiras está o imperativo de gozo (inatingível) das imagens idealizadas, performance física e mental do corpo, fonte de mal-estar inevitável; entre as segundas, o efeito social transformador dos movimentos que contestam essa idealização e a própria ideia de que haja um corpo normal específico da espécie ─ o que tem aberto muitos caminhos de inserção social dos assim chamados deficientes (disabled).

Medicalização: frequentemente se pensa na medicalização como um efeito do crescimento do poder médico e da indústria de produtos e serviços de saúde sobre a população, que se torna vítima de mais uma forma de controle. Mas o quadro é bem mais complexo hoje. Boa parte do processo de medicalização tem origem na demanda dos próprios consumidores, que reivindicam acesso a diagnósticos, tratamentos, aprimoramentos e controle de riscos.

Diversidade: o movimento em torno do direito dos diferentes ao reconhecimento social, político e legal de suas características ─ promovido pela militância em torno das disabilities (deficiências) – é um dos acontecimentos mais interessantes e promissores da atualidade. Ver Oscar Pistorius, com duas pernas artificiais, buscando índice olímpico, ouvir um juiz cego falando de sua luta para vencer o preconceito, compreender a riqueza da língua de sinais, ler autistas narrando sua autobiografia etc, são experiências que têm o potencial de nos tornar a todos melhores cidadãos, mais capazes de agir na construção de uma sociedade humanamente mais rica, mais justa, mais interessante de se viver.



Saúde: a preocupação dos indivíduos com a própria saúde é uma característica bem-vinda dos tempos atuais. Vivemos mais e mais confortavelmente que nossos avós. Mas, de novo, nada é simples. O chamado healthism, a ideologia da saúde, transforma a saúde de um meio para viver uma boa vida, em fim em si mesmo. Numa cultura em que a reflexão sobre o que é viver uma boa vida começa a se resumir à contagem de calorias, controle do colesterol e faxina das rugas, muita coisa interessante claramente se perde.

4) Roteiros alternativos - espaço dedicado à sugestão de links, textos, vídeos, referências diversas de outros autores/pesquisadores que possam contribuir com a discussão. Para encerrar essa sessão, transcreva, se quiser, uma fala de um pensador que o inspire e/ou seu trabalho.

René Leriche (médico francês do século XIX): “A saúde é a vida no silêncio dos órgãos”.

5) Como conhecer mais de suas produções?

O currículo Lattes, no portal do CNPq, é uma maneira de conhecer o trabalho dos professores e pesquisadores brasileiros. No site www.pepas.org, que estamos relançando na UERJ, os interessados poderão conhecer outros pesquisadores do IMS, os cursos que oferecemos junto com suas bibliografias, os eventos que iremos produzir etc.

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