quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A realidade dos sonhos





"A palestra é acerca do sonhar ou vocês estão sonhando acerca de uma palestra?"


Nelson Job - pós-doutorando em História das Ciências, Técnicas e Epistemologia pelo HCTE/UFRJ, psicólogo, editor do blog Cosmos e Consciência e palestrante do cineclube Ciência em Foco de setembro.


1) O diretor inglês Christopher Nolan conquistou um espaço de destaque no cinema mundial, com filmes que são igualmente sucessos de bilheteria e de crítica, e que fazem o público pensar. Seu último filme - o fechamento da trilogia do Batman - rendeu discussões políticas extensamente comentadas até mesmo por filósofos como Slavoj Ẑiẑek. Sua trajetória e as características de seus filmes favorecem comparações frequentes com Alfred Hitchcock. De que forma podemos compreender esta recepção de suas obras, bem como sua relevância para a época atual?

De uma forma geral, os comentários acerca da obra de Nolan são tendenciosos. O último Batman foi acusado de ser um filme "de direita". Acredito que o diretor apenas encaixou os personagens onde as temáticas contemporâneas que ele quis abordar se expressaram melhor. Quando o Coringa queima a montanha de dinheiro no Batman anterior se conclamando "o agente do caos", infiro um sorriso de soslaio do diretor naquela cena. Se Nolan fizesse um filme com os personagens do universo mutante dos X-Men, talvez Wolverine ganhasse contornos "de esquerda". Mas tudo isso é apenas um comentário acerca de análises dialéticas e ideológicas (que eu tento não fazer) em relação aos filmes. Já a comparação com Hitchcock é precisa, tanto no que diz respeito à obra de ambos terem desenvoltura nos quesitos "cinema autoral" e "blockbuster", mas também porque eles trazem experiências sensórias ao espectador para além da narrativa linear. No caso de Hithcock, o espectador é cúmplice do diretor ao "saber mais" que os personagens, gerando uma "borra" nos supostos limites entre obra, diretor e espectador. Nolan, por sua vez, propõe tempos e narrativas diferentes e coexistentes, como no caso de Amnésia e A Origem.

2) Por meio de uma narrativa que se inspira nos policiais e em elementos do film noir, A Origem apresenta uma visão ficcional para nosso universo dos sonhos, explorando de forma criativa suas potencialidades. Tema recorrente na história do cinema, os sonhos passaram a conquistar o interesse científico em uma época em que o próprio cinema surgia e florescia na Europa. Enquanto arte capaz de criar sonhos e realidades, de que modo relacionar a realidade criada pelos filmes - e pelos sonhos - com aquela sobre a qual atua a ciência?

Na virada do século XIX para o XX, a psicanálise teve o papel importante de recuperar modernamente o interesse pelos sonhos. Digo "modernamente" pois o termo implica algumas considerações relevantes de Bruno Latour. Em outras palavras, o ônus do sonho ter sido "sitiado" pela psicologia (em um sentido geral), ficando re(l/n)egado a um aspecto representacional, ou seja, o sonho não teria tanta importância em si, apenas no que ele "quer dizer", no que "está por trás" dos sonhos. Jung deu contribuições mais interessantes, pois retomou a questão de que o sonho deve ser assimilado, a despeito de sua técnica onírica ser ainda muito interpretativa. Já as filosofias de Henri Bergson e María Zambrano me permitem conceber o estatuto de ser dos sonhos, ou para usar os termos do meu campo conceitual, uma "ontologia onírica". A partir daí, recuperam-se concepções xamânica, taoísta, budista, hermética dos sonhos, aliadas a algumas teorias mais especulativas da ciência, como a do físico Roger Penrose (que são mais interessantes e profícuas que do que se observa hoje na maioria das concepções da neurociência), compondo, assim, um campo conceitual mais complexo e consistente para se conceber os sonhos atualmente.

3) À medida que adentram as camadas de um sonho, os personagens de A Origem passam a experimentar o tempo de forma diferente, e até mesmo duvidar da existência de sua realidade "original". Tanto neste quanto em outros filmes da obra de Nolan, os personagens se defrontam com conflitos que os fazem questionar sua existência, sua realidade e seu papel no mundo. Na época atual, diante da fugacidade de um tempo vinculado ao progresso contínuo, da pressa e da aceleração do ritmo e dos fluxos da vida, como abordar a forma como experimentamos o tempo, e como criar espaço para o questionamento?


Existem várias formas: particularmente sou entusiasta de uma articulação entre, de um lado, um estudo com ambições práticas, ou seja, a utilização de conceitos radicalmente transdisciplinares (um campo conceitual que envolve a filosofia e as outras ciências humanas, além da ciência, da arte e - por que não? - da magia) na vida e não apenas como recursos de peripécias intelectuais, racionais. De outro lado, entendo ser relevante um exercício para além das imagens, para além do tempo e espaço, como a meditação, apreendida em termos bem gerais, sem especificações, mas também sem restrições religiosas. Tanto o estudo e a meditação podem nos trazer reflexões e experiências relevantes acerca do(s) tempo(s) e do atemporal. Existem, é claro, as experiências com substâncias, em que é comum experimentar dilatações e contrações do tempo, mas essas podem ter muitos efeitos colaterais incontroláveis. As experiências com substâncias que podem ser mais eticamente realizadas são aquelas inseridas em um contexto ritualístico por algum tipo de xamã. De qualquer forma, a meditação não tem (ou ao menos tem muito menos) "efeitos colaterais", sendo muito mais recomendada. Em uma clínica psicológica, a experiência com o tempo e com a vida psíquica em geral é um problema bem mais delicado, pois o que se vê na prática é uma "conquista do imaginário" dos clientes ou "pacientes" pelos terapeutas: um inconsciente mais ou menos livre que chega a um consultório, na extrema maioria dos casos, é povoado quase imediatamente por (de acordo com as "crenças" do terapeuta) complexos, arquétipos, couraças etc. Tais "crenças" ou linhas de escola clínica têm a sua própria concepção de postura em relação ao tempo. Nenhuma corrente de pensamento está livre disso: se os esquizoanalistas (partidários das ideias - que muito me interessam - de Deleuze e Guattari) criticam os psicanalistas por colocarem o Édipo em todo mundo, podemos, por outro lado, criticar muitos dos esquizoanalistas por colocarem o rizoma no mundo todo. Hoje, cada vez menos utilizo, enquanto psicólogo, o recurso do consultório (muitas vezes entendido pelo cliente mais como o locus da lamúria e menos como o da transformação) e cada vez mais utilizo o dispositivo do grupo de estudos, não no estereótipo de grupo "terapêutico", e sim no sentido de criação coletiva de conceitos radicalmente transdisciplinares e práticos. Nesse sentido, ainda sou clínico, mas minhas "ferramentas" clínicas são os conceitos práticos, mas também sou um pensador e facilitador transdisciplinar. Tais ferramentas podem permitir uma apreensão do tempo, seja em que sentido for, um tanto relevantes, até mesmo radicais. Porém, em meus sonhos mais remotos, gostaria de me pensar como "personal dreamer", mas isso é outra história ou outro sonho...

4) Contraplanos - expresse em poucas palavras (ou apenas uma) sua sensação com relação aos sentidos e problemáticas evocadas pelas seguintes palavras.

- Consciência: A dobra da mente sobre si mesma.

- Sonho e imagem: O sonho é um tipo de imagem.

- Arte e pensamento: Ontologicamente inseparáveis.

- Real: Devir.

5) Roteiros alternativos - espaço dedicado à sugestão de links, textos, vídeos, referências diversas de outros autores/pesquisadores que possam contribuir com a discussão. Para encerrar essa sessão, transcreva, se quiser, uma fala de um pensador que o inspire e/ou seu trabalho.

Já citei vários autores e campos de conhecimento na entrevista. Acrescentaria: para uma relação consistente entre a filosofia de Deleuze e a ciência, o filósofo Manuel DeLanda; para uma relação sem estereótipos e exageros "nova era" entre a filosofia e a Mecânica Quântica, o médico anestesista Stuart Hameroff e para um estudo sério da influência do Hermetismo e alquimia na obra de Isaac Newton - e, por desdobramento, na ciência em geral - a historiadora da ciência Betty Jo Teeter Dobbs.

Vou deixar aqui o link do HCTE, ou o departamento de História da Ciência, das Técnicas e Epistemologia da UFRJ, hoje coordenado pelo matemático e poeta Ricardo Kubrusly, onde fiz meu mestrado, doutorado e faço meu pós-doutorado orientado e supervisionado pelo físico Luiz Pinguelli Rosa. Lá é possível fazer um estudo consistente, ousado e transdisciplinar no Rio de Janeiro: http://www.hcte.ufrj.br/

Cito uma frase do escritor Philip K. Dick: "A teoria modifica a realidade que descreve".

6) Como conhecer mais de suas produções?

Através dos meus blogs. Tem o "Cosmos e Consciência" que tende a ser mais conceitual: www.cosmoseconsciencia.blogspot.com.br e o "Druam" que tende a ser mais ficcional: www.druam.blogspot.com.br mas ambos são, inevitavelmente, complementares.

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