quarta-feira, 3 de julho de 2013

Por que a tragédia não nos é contemporânea?



“O cinema participa de um tipo ou modo de linguagem capaz de dar carne ao pensamento”, Alexandre Costa, doutor em Filosofia, professor do Departamento de Filosofia da UFF e palestrante do Ciência em Foco de julho.
1) Por que pensar com o cinema?
Além de contar com um acervo extraordinário, reunindo ao longo de sua história uma série de obras cuja beleza e teor de pensamento são literalmente memoráveis, o cinema participa de um tipo ou modo de linguagem capaz de dar carne ao pensamento, tornando-o sensível por meio de suas imagens, de seus sons, de suas falas; dessa forma ele dispõe, potencialmente, de uma força de sedução invejável, porque apresenta, unidos, prazer e reflexão, estimulando o pensamento ao mesmo tempo que nos instiga os sentidos.



2) Além de Medeia (Medea - 1969), Pasolini possui em sua filmografia dois outros filmes que dialogam com a tragédia grega: a adaptação ficcional Édipo Rei (Edipo Re - 1968) e o documentário Apontamentos para uma Oréstia africana (Appunti per un'Orestiade africana - 1970), que acompanha os ensaios e as filmagens para uma possível adaptação de tragédias de Ésquilo no continente africano. Em todos eles, destacam-se as estratégias de atualização dos temas suscitados pelos mitos que povoam os textos clássicos. Sendo assim, como pensar a transposição e a reativação dos temas trágicos a partir do cinema?
Acho que o Pasolini é um bom exemplo de como fazer isso a que você nomeou “a transposição e a reativação dos temas trágicos” pelo cinema. É que Pasolini não nos apresenta, jamais, adaptações formais dessas tragédias que ele decidiu filmar. Se alguém não conhece o enredo dessas histórias ancestrais, não será pelos seus filmes que passará a conhecê-lo. Sua relação com as obras trágicas e, mais do que isso, com o “mundo” e o idioma que as criaram, se dá claramente por meio de uma apropriação explícita: Pasolini sabe que é preciso trair a tragédia para que ela se possa fazer atual; por isso suas traduções cinematográficas para essas tragédias gregas mostram um grande grau de intervenção do autor, no esforço de estabelecer um diálogo efetivo com o trágico, uma “voz” que ele mesmo, Pasolini, reconhece nos ser hoje tão estranha e estrangeira a ponto de não a reconhecermos, a ponto de estarmos surdos para ela. É esse, por sinal, o tema principal de sua Medeia – o que nos afasta tão decididamente do homem antigo que nos deu origem histórica? Por que a tragédia e sua poesia, a narrativa e o pensamento míticos tornaram-se progressivamente uma voz cada vez mais difusa e distante? Trata-se de um arranjo delicado, situado em perspectiva histórica: Pasolini nos faz ver que, em se tratando de Ocidente, é preciso reconhecer que aquilo mesmo que nos é berço e fundamento e que, por esse motivo, sempre nos é mais ou menos próximo, ainda que inconscientemente, é também irrecuperável, como se fosse um alfabeto perdido, dificilmente reconhecível.

3) De que forma poderíamos articular a experiência do espectador e sua relação com a cena trágica, na Antiguidade, com a experiência do espectador de cinema ao longo de sua história?



Acredito que simplesmente não teríamos como articulá-las. E este acaba sendo um bom exemplo, um possível efeito do desencontro histórico que tanto fascinará e incomodará Pasolini: o espectador de cinema já nasceu num tempo em que sua audição para o trágico, em particular, já esmaeceu; além disso, o modo de esse espectador fruir a experiência estética em geral é também tão radicalmente outro que a experiência vivida num antigo teatro grego lhe seria, ao que parece, impossível de reproduzir. A começar por essa distinção subliminar que eu acabo de fazer sem sequer tê-la percebido: um daqueles antigos “espectadores” não ia ao teatro para ver “arte” ou “entretenimento” ou qualquer outra palavra que pudéssemos usar aqui; ele ia ver a representação do que julga ser a própria realidade, posta diante de seus olhos por meio do rito e da festa litúrgica que o antigo teatro grego era; tratar as tragédias gregas tendo-as, em primeiro plano, como fenômeno artístico revela nosso anacronismo e diz, de fato, muito mais de nós do que dela, de seu tempo e de sua fala.


4) Impossível não aproveitar a oportunidade para dedicar uma das perguntas aos recentes acontecimentos das manifestações em cidades pelo Brasil, reunindo diversas bandeiras pela melhoria geral da qualidade de vida. Tendo em vista que o filme de Pasolini é uma visão sobre a tragédia de Eurípides, e levando em conta o papel político da tragédia na Antiguidade e sua relação com a vida na cidade, haveria algum modo de pensar os impasses que nosso país vive na época atual, a partir de um paralelo com a apresentação mítica ou com sua atualização cinematográfica? Sem entregar muito de sua fala, de que modo a tragédia nos é contemporânea?
Pelo que disse anteriormente, parece ficar claro que essa questão se apresenta para mim justamente pelo seu avesso. A pergunta é: como e por que a tragédia não nos é contemporânea? É basicamente sobre isso que pretendo falar em minha exposição.

5) Como conhecer mais de suas produções?
No que se refere especificamente ao meu trabalho com interpretação de filmes e crítica cinematográfica, publicamos recentemente, eu e Patrick Pessoa, um audiolivro editado pela NAU Editora, intitulado “A história da filosofia em 40 filmes”, obra resultante da mostra homônima, realizada no Teatro Nelson Rodrigues entre maio de 2009 e março de 2010. Sobre essa mostra – e também sobre a sua segunda edição, ocorrida entre 2011 e 2012 – pode-se visitar o site www.lavoroproducoes.com.br, onde será possível encontrar os áudios originais das palestras e demais informações acerca do evento. Obrigado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário